STAR "X"

A Educação Física na Escola

Currículo sem Fronteiras, v.6, n.2, pp.114-125, Jul/Dez 2006


CONFRONTOS ENTRE PRÁTICAS CULTURAIS DE INVISIBILIDADE E DE DISPERSÃO: a política de currículo como Fogo de Monturo

Ozerina Victor de Oliveira

Universidade Federal de Mato Grosso

Mato Grosso, Brasil

Resumo

Este texto desencadeia uma análise de efeitos de políticas de currículo desenvolvidas ao final do século XX. Parte-se de depoimentos de professores, pais e alunos, considerados como protagonistas da política de currículo, caracterizando seus efeitos. As questões orientadoras da análise giram em torno das práticas de significação que, direcionadas e/ou enraizadas na educação escolar, dão origem a tais efeitos. O processo analítico indica práticas culturais que constroem a noção do currículo como sendo neutro, gerando uma visão apolítica dele e favorecendo a manutenção de relações hegemônicas. Na mesma política, práticas culturais que tomam a comunidade como centro e que se disseminam, potencializam os protagonistas do currículo a construírem novas hegemonias.

Palavras- chave: dispersão de poder, política de currículo, práticas culturais.

Abstract

This text unchains an analysis of curriculum policies effects developed at the end of the 20th century. It starts from teachers, parents and students testimony, considered as protagonists of the curriculum policies, characterizing their effects. The guiding subjects of the analysis are about significance practices that, addressed and/or taken root in the school education, create such effects. The analytical process indicates cultural practices that construct the notion of the curriculum as being neutral, generating a nonpolitical vision of it and favoring the maintenance of hegemonic relationships. In the same policy, cultural practices that take the community as center and that are disseminated by them, make the protagonists of the curriculum more powerful in building new hegemonies.

Key-words: curriculum policy, cultural conflict, power dispersion.

ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 114

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Hoje, o pessoal, tanto o professorado como os meninos, eles não ligam muito não, de jeito nenhum. Precisa da gente tá adulando ele pra ir pro colégio. De primeiro não, os meninos achavam bom ir pro colégio. (Ex-professora, trabalhou na rede municipal entre o final dos anos 70 e início dos 80)

[sobre o ensino por projetos] hoje nós estamos assim... fazer porque tem de fazer... que parece que é brincadeira... todo mundo finge que faz e todo mundo aceita. (Ex-coordenadora pedagógica e professora na rede municipal desde os anos 90)

Eu percebo, agora, que esses alunos não têm muita responsabilidade com o ensino porque antes tinha mais, o aluno não faltava muito na escola, os professores pediam tarefa de casa, faziam. Hoje os alunos não estão com muita vontade de estudar não. (Ex-aluno e técnico administrativo da SMERC, desde os anos 80)

A cada dia mais o sistema de ensino está sendo mudado... a mudança mais forte é a questão da não reprovação...essa questão é que acabou com o ensino [...] Agora os alunos não têm que se preocupar com reprovação, tem que ter mais só a freqüência, não tem mais como você tá segurando o aluno não [...] A questão do ciclo, pior ainda, não tem uma continuidade com o professor. O professor trabalha, aí, no ano seguinte já tem outra disciplina diferente, não está no ciclo [...]. (Ex-aluno, professor da rede municipal desde os anos 80)

Hoje a gente se depara muito com a legislação, às vezes você quer fazer uma coisa e aí você não pode fazer porque a LDB não assegura, outra lei não assegura. [...] nesse mundo globalizado nosso, onde as transformações acontecem todos os dias, onde as crianças vêem uma série de informações diferenciadas que chamam mais atenção que nós. Na sala de aula, ultimamente, nós estamos sendo professor de quadro, giz e mimeógrafo [...] Essas inúmeras informações, essas inúmeras teorias tem nos deixado assim muito perdidos sabe, eu tenho me sentido assim [...]. (Ex-coordenadora pedagógica e professora da rede municipal desde os anos 80)

Esses depoimentos de pais, professores, ex-professores, coordenadores pedagógicos e ex-alunos foram extraídos de uma pesquisa delimitada em torno do processo de produção da política de currículo, ocorrido nas três últimas décadas do século XX, em um município do Estado de Mato Grosso1. Embora situados em uma realidade histórica específica, lembram muitos comentários que, cotidianamente, se houve sobre a educação escolar. Eles dizem respeito à falta de clareza dos fins da educação escolar, expressos na falta de disposição dos alunos para freqüentar as escolas e dos professores e pais para se engajarem no processo de ensino, bem como nas diversas orientações teórico-metodológicas direcionadas às escolas, vindas de diferentes instâncias do Estado e de outros espaços, com poder de intervenção nos currículos escolares.

Ao enfocar essa problemática a partir do campo do currículo, a questão orientadora deste texto gira em torno das práticas de significação que, direcionadas e/ou enraizadas na de significação como política cultural, a qual, relacionada à educação escolar, pode ser concebida como política de currículo, indaga-se, inicialmente, sobre o que ocorre nessas políticas para que produzam desmobilização, descrédito e despotencialização dos

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protagonistas do currículo na educação escolar pública.

Em resposta, defende-se que tais efeitos resultam de um processo de configuração e aprofundamento de uma política de currículo composta por práticas culturais de invisibilidade das relações de poder. Tendo em vista a realidade histórica focalizada, essas práticas culturais se apresentam por quatro vias: a) burocratização das relações na definição dos currículos; b) formação profissional, organização do trabalho e contratação dos professores; c) multiplicidade de intervenções, ações e programas nos currículos e; d) concepção e organização do conhecimento a ser trabalhado nas escolas.

Burocratização das relações na definição dos currículos

No decorrer do processo da política de currículo, abordado na pesquisa fonte deste texto, encontra-se a existência de relações burocráticas. Recorrendo-se a Kliebard (1980), para abordar a relação entre burocracia e currículo, entende-se a burocratização como a presença da racionalidade técnica, caracterizada pela lógica da eficiência e da eficácia, tomada do taylorismo, na organização do currículo das escolas. Isto significa que a burocratização implica a presença da lógica da modernidade neste currículo.

Levando-se em conta a própria lógica da modernidade e, portanto, a presença de um Estado Moderno como um espaço de práticas culturais, a burocratização do currículo também implica o significado de burocracia abordado por Weber (KLIEBARD, 1980, p.109). Isso porque o referido autor compreende a burocracia na perspectiva da análise de linhas complexas de poder e de influência dentro das organizações (id., ibid., p.109). No caso da pesquisa fonte deste texto, a burocracia executiva do Estado Moderno.

Essa linha complexa e de influência se apresenta como uma prática cultural, porque incorpora a eficiência e a eficácia como modo de funcionamento “natural” do Estado, legitimando a racionalidade técnica não só nesse espaço como também em outros, entre eles, o currículo escolar.

Inicialmente, essa burocracia executiva se estende ao currículo escolar por meio de um conjunto de documentos, na forma de ofícios, direcionados às escolas municipais, com o intuito de solicitar dados de matrícula, de progressão dos alunos e fornecer programações de atividades a serem efetuadas, pela escola, nas datas comemorativas.

Devido à relação entre instâncias do Estado e escolas se reduzir a um escasso pacote de instruções – porque fornecido somente nas datas comemorativas cívicas –, parece, em um primeiro momento, haver uma ausência de orientações pedagógicas direcionadas às escolas. No entanto, associando-se o pacote de instruções à vigência da LDB nº 5692/71 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, como componente do texto de currículo existente nesse momento, não há ausência de orientações pedagógicas, mas a configuração de um currículo burocrático, que prima pelo tecnicismo, pela disciplinaridade, pelo civismo, pela ordem e pela eficiência. Com essas implicações, o currículo correspondente define sua órbita em torno da racionalidade técnica, situando as disciplinas em seu cerne.

No decorrer do processo analisado, ocorre o aprofundamento da burocratização. Tal

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aprofundamento pode ser visualizado não só no formato dos documentos como, em especial, nos dados estatísticos solicitados à escola.

O corpus da fonte documental, que dá sustentação à análise do início do processo da política de currículo compõe-se, predominantemente, de cartas, relatórios descritivo-analíticos, projetos, abaixo-assinados e jornais. Mais ao final do processo, os documentos predominantes são ofícios circulares, declarações, instruções normativas, convocações, quadros demonstrativos, dados estatísticos, atas e relatórios de consumo. Além das implicações relacionadas à predominância destes tipos de documentos, o conteúdo deles está marcado pelo imperativo e pela determinação, característicos da lógica da eficiência presente na racionalidade técnica. Isso pode ser ilustrado com o próprio formato de uma instrução normativa, pois, esta se inicia com o termo determina e encerra-se com os termos publique-se e cumpra-se.

Outro ponto instigante, que compõe o quadro de burocratização do currículo, é uma demonstração da vontade de ter conhecimento das escolas, dos protagonistas que nelas atuam e daquilo que eles fazem.

Registra-se, no processo analisado, um número significativo de documentos, vindos de diferentes instituições e de diferentes instâncias oficiais do Estado, solicitando ou encaminhando dados estatísticos referentes à escola. Geralmente, anexo aos ofícios, segue um formulário ou um quadro demonstrativo já preenchido ou a ser preenchido. Comumente, justifica-se a necessidade dos dados pela disponibilidade e otimização de recursos, bem como pela eficiência e eficácia em seu gerenciamento. Se esse argumento lembra a racionalidade técnica, não é mera coincidência.

Dessa vontade de conhecer e de produzir as escolas, características da burocratização, pode-se dizer que esse currículo tem, na intensificação da vigilância, uma perspectiva panóptica, as quais Bhabha (2003) identifica como estratégias colonialistas, entendidas, aqui, como táticas de dominação, de manutenção das relações hegemônicas.

Em suma, entende-se que, a disciplinaridade, a racionalidade técnica e, portanto, a burocracia executiva do Estado Moderno compõem facetas de uma mesma lógica produtora de uma política de currículo. Essa lógica confere ao currículo uma identidade marcadamente caracterizada por processos técnicos, concorrendo, fundamentalmente, para a produção do significado do currículo como algo “neutro”.

Formação profissional, organização do trabalho e contratação de professores

Sob os aspectos destacados nessa seção, nota-se, no processo da política de currículo analisada, um movimento diacrônico entre melhoria da carreira, melhoria na qualificação profissional do corpo docente e realização de um currículo com perspectivas de construção de novas hegemonias.

No início do referido processo, encontra-se a presença de professores leigos, selecionados pela comunidade escolar conforme seu compromisso político para com essa

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comunidade. No decorrer do processo, os professores foram se qualificando e passaram a ser contratados por meio de concursos públicos, com o critério da qualificação profissional, não mais o do compromisso político.

No que diz respeito à organização do trabalho docente, no início do processo da política analisada, os professores tinham tempo para formação continuada – proporcionada pela Secretaria Municipal de Educação – que incluía o estudo, planejamento e preparação de material didático-pedagógico em suas carga horária de trabalho contratual. No decorrer do processo, cada vez mais, os professores passaram a ter mais qualificação, mais trabalho e menos tempo para formação continuada, bem como para preparação de seu trabalho em sua carga horária. Daí, conclui-se que existe um processo de intensificação do trabalho, concorrendo para uma prática cultural que impinge um significado de “neutralidade” ao currículo.

A referida prática cultural corrobora com a perspectiva de neutralidade porque ocasiona a divisão do trabalho. Nesse momento, a divisão do trabalho docente entre aqueles que planejam, aqueles que executam e aqueles que avaliam, configura um quadro de racionalidade técnica a esse trabalho, portanto, uma prática cultural que confere invisibilidade à dimensão política da luta cultural e, por conseguinte, uma “despolitização” do currículo escolar.

As implicações entre despolitização do currículo escolar e trabalho docente encontram-se relacionadas, ainda, à qualificação profissional. No início do processo da política analisada, os cursos de formação de professores mostravam-se colados à realidade dos estudantes, ou seja, seus currículos eram pensados para e a partir da identidade cultural das pessoas e da luta política do lugar. Já ao final, identifica-se um distanciamento dos cursos em relação à realidade local, conferindo, assim, um distanciamento proporcional dos docentes da rede municipal em relação aos conflitos políticos locais.

A saída de cena das questões políticas na formação de professores pode ter corroborado o não reconhecimento de conflitos no currículo escolar, ou seja, em vez de se ter uma formação de professores colada às necessidades, desafios e conflitos locais, tem-se uma formação cada vez mais distanciada dessas questões, configurando-se, assim, uma prática cultural que concorre para o distanciamento da educação escolar em relação às identidades culturais locais. Por conseguinte, essa formação de professores e os rumos que tomaram a contratação e a organização do trabalho desses profissionais contribuem para a produção do significado de “neutralidade” do currículo.

Multiplicidade de intervenções, ações e programas no currículo escolar

Encontra-se, mais ao final do processo da política analisada, uma multiplicidade de intervenções, ações e programas, vindos de diferentes instâncias do Estado e de outros espaços. Essa multiplicidade, porém, não se identifica somente com a quantidade ou origem de ações e programas, mas, internamente, no próprio processo da política de currículo. Em textos que compõem o currículo, encontra-se, por um lado, um discurso que o caracteriza

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numa perspectiva crítica e democrática; por outro, a prescrição das competências para um currículo que responda aos desafios da referida era pós-moderna, tais como liderança, iniciativa e habilidade de comunicação, marcadamente caracterizadas pela invisibilidade da dimensão política no currículo.

Ainda no que diz respeito à multiplicidade, encontra-se, no decorrer do processo analisado, a intensificação da presença do mercado editorial. No início desse processo, os professores da rede municipal elaboraram uma cartilha a partir da cultura local e a utilizaram na alfabetização. Mais ao final, não se encontra nenhuma cartilha elaborada pelos professores, mas a ampla utilização de livros didáticos de grandes editoras, fortalecendo a moderna idéia de ensinar a partir de um conhecimento supostamente neutro. Isto reforça, por sua vez, a divisão do trabalho docente: as editoras têm legitimidade para pensar o currículo o os professores para colocá-lo em prática.

Quanto à caracterização das ações e programas como práticas culturais que concorrem para o significado de “neutralidade” do currículo, identifica-se a existência de diferentes perspectiva pedagógicas.

Desde o início do processo analisado, nota-se referida existência. No entanto, ela amplia-se, mais ainda, no decorrer do processo. No início deste, encontra-se a presença da pedagogia libertadora, acrescentando-se, no seu decorrer, a presença da etnociência e da etnomatemática, do construtivismo e da pedagogia histórico-crítica; esta última, marcando seu comparecimento por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Essas constantes mudanças, acrescidas à predominância e ênfase nas questões de como o aluno aprende e de como se deve trabalhar o ensino, leva a crer que o currículo escolar se limita a decisões metodológicas, reduzindo-o, assim, a uma questão técnica, imprimindo, portanto, “neutralidade” a ele.

Concepção e organização do conhecimento a ser trabalhado nas escolas

No que diz respeito às implicações da organização curricular, no sentido de aprofundamento da “neutralidade” do currículo, nota-se, no decorrer do processo analisado, o fortalecimento de uma orientação pedagógica fundamentada no construtivismo ou, como se observa no referido processo, na linha construtivista.

Destaca-se que, referida linha se desenvolve em um contexto de deslocamento teórico, ocorrido no próprio campo da educação. Esse deslocamento consiste na passagem de uma predominância de teorias da educação com base social e política, para o alto prestígio de uma base teórica calcada nos saberes psicológicos, movimento que tem sido denominado de psicologização da educação (SILVA, 1993; LAJOUNQUIÈRE, 2000).

A psicologização da educação parece ter sido produzida, entre outros motivos, pela compreensão de que o fracasso escolar ocorre devido a inadequações entre métodos de ensino e estados psicológicos dos estudantes. Isso passou a demandar, dos saberes psicológicos, a programação de métodos de ensino e, em especial, as teorias relacionadas à psicologia cognitiva e do desenvolvimento (SILVA, 1993; LAJOUNQUIÈRE, 2000).

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Em termos locais, a psicologização se apresenta na relação entre decréscimo da presença da pedagogia libertadora e a crescente presença da linha construtivista como texto dos currículos escolares. Desse movimento, pode-se inferir uma preocupação no como ensinar, isto é, com a linha construtivista, a órbita do currículo passou a girar em torno do método.

Uma implicação significativa dessa centralidade está relacionada à presença da lógica da modernidade no currículo, uma vez que, no construtivismo, os significados de como trabalhar os saberes escolares estão marcados pelo processo de individualização, vigilância e controle (SILVA, 1993, p. 4); logo, estão marcados pela racionalidade técnica, contribuindo, sobremaneira, para a construção da suposta neutralidade do currículo.

Considerações intermediárias

Num corolário do exposto até o momento, os excertos apresentados no início deste texto indicam os efeitos da divisão e intensificação do trabalho docente, da multiplicidade de intervenções, da psicologização do currículo, da racionalidade técnica presente na formação e organização do trabalho docente, da lógica estéril e esterilizante da burocratização. O movimento ocorre no sentido da invisibilidade dos conflitos, dificultando o processo de diferenciação, identificação e defesa de diferentes protagonistas e de suas respectivas políticas culturais. Assim, essa invisibilidade vem sendo proporcionada por práticas culturais configuradas numa política que impinge neutralidade ao currículo, construindo o significado de que ele é apolítico. Tais efeitos parecem concorrer para a manutenção de relações desiguais, favorecendo grupos socialmente hegemônicos e fragilizando práticas culturais potencializadoras de novas hegemonias.

Enfim, a intensificação e divisão do trabalho docente, a burocratização, o excesso de intervenções, a psicologização e a racionalidade técnica que tudo permeia têm constituído a invisibilidade da política de currículo, tirando de cena e da pauta a desconfortável discussão/reconhecimento das relações de poder desiguais entre os diferentes protagonistas sociais, bem como da necessidade de nos colocarmos diante delas.

Exercitando a reversibilidade na análise

Os efeitos apresentados até então não ocorrem de modo linear, harmônico e inexorável, o que se observa a partir dos seguintes excertos:

de primeiro tinha briga demais... briga de professores com pais [...] mas naquele tempo foi até bom que o pessoal fazia as coisas assim mais com esforço, mais com coragem. (Ex-professora, trabalhou na rede municipal entre o final dos anos 70 e início dos 80)

em 74 [...] como era vista a escola pela comunidade... a escola que tem os

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conhecimentos, que tem as informações, que tem o contato com os filhos, que tinha o contato com os pais. E a filosofia dessa equipe que tinha o domínio, a hegemonia política do local, [...], eram pessoas intelectuais, conhecedoras do método de Paulo Freire. Já eram idéias novas que vinham pra pregar na escola, que não era só o professor e o diretor que mandava e não tinha contato nenhum com os pais... e começam então a fazer uma escola democrática, onde os pais participavam de todas as decisões. Os pais iam à escola debater os problemas, os professores tinham que ter contato com os pais... a escola aqui era o centro de tudo [...]. (Ex-aluno, ex-professor e diretor da rede municipal, ex-prefeito)

Nós fomos muito exigentes querendo os nossos direitos, principalmente na área de educação. Na área da educação, a gente sentia mais perto da gente... Aquela área da educação servia não só como educação dos filhos, mas também dos pais, mais também como meio de comunicação. Era um veículo de comunicação que nós tínhamos mais próximo era a escola... era só a escola.[...] Houve um tempo que a nossa escola [...] era um meio de comunicação, não só educava pais e filhos, mas também informava... aquela época do cruzado... a gente ficou sabendo e entendeu o negócio através da escola... e aquilo era uma coisa que interessava toda a comunidade. (Mãe de aluno e liderança de movimento popular nos anos 70 e 80)

Os pais naquela época eram outros... tinham mais preocupação com a aprendizagem dos filhos, mesmo que ele fosse um pai analfabeto... ia na escola no mínimo uma vez por semana... procurava saber como é que tava o aprendizado do filho. (Ex-aluno e professor da rede municipal desde a década de 80)

essa aula de alfabetização de adulto amadureceu toda a luta. [...] além de alfabetizar, [...], não era só aprender a ler e escrever, era também aprender a pensar [...] abrir a mente.[...]. (Mãe de aluno e liderança de movimento popular nos anos 70 e 80)

[...] naquela época, na década de 80, quando eu já estudava e já era um pouquinho maior, os pais tinham certeza, os alunos tinham certeza do que queriam, os professores tinham certeza disso sabe, e quando eles tinham que lutar, lutavam. (Ex-aluna e professora da rede municipal desde os anos 80)

Esses depoimentos dizem respeito à luta de trabalhadores do campo por escola, presente na política de currículo analisada. Retomando a indagação inicial, questiona-se, nesse momento, sobre as práticas de significação que geraram tais efeitos.

Na referida política de currículo, a luta por escola encontrava-se conectada à luta pela posse da terra: ao mesmo tempo em que os trabalhadores do campo procuravam garantir essa posse por via institucional, justificavam sua legitimidade lançando mão da presença da escola e do número de alunos nela matriculados. Além disso, concebiam a escola como um espaço onde conseguiriam instrumentos necessários à luta política, na perspectiva de emancipação social.

A luta consistiu, inicialmente, na ação tática pela existência de escolas públicas, não se restringindo à conquista do acesso, mas, também, implicando a luta em torno dos

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conhecimentos, valores e significados a serem produzidos, reconhecidos e distribuídos nas escolas, especialmente no que diz respeito a como organizar essa distribuição e produção. É nessa perspectiva que a luta pela posse da terra encontrava-se conectada a uma luta cultural e, visceralmente, ao currículo escolar.

No início do processo analisado, um grupo significativo de professores atuava sob a influência dos fundamentos da pedagogia freireana: trabalhava mais a partir de temas geradores, por meio de projetos de ensino e com uma cartilha elaborada regionalmente, conforme registro anterior. Na cartilha, encontram-se temas e palavras do universo vocabular dos trabalhadores do campo, fornecendo fortes indicativos da conexão política/cultura no currículo.

No decorrer do referido processo, registra-se, ainda, a presença da etnociência e da etnomatemática compondo o texto curricular. Essa abordagem pedagógica parece ir ao encontro da pedagogia libertadora, porque defende uma perspectiva global, crítica e transdisciplinar de produção do conhecimento, entendendo que este é produzido a partir de ações cotidianas, envolvendo o estabelecimento de relações, situadas em culturas diferentes e em épocas diferentes. Enquanto perspectiva de organização curricular, seu eixo gira em torno da relação entre cognição e cultura, portanto, de modo semelhante à pedagogia libertadora, toma a realidade do conjunto dos alunos como mediadora do processo de ensino.

A julgar pelos depoimentos citados nesta seção, a conexão escola/luta no campo e a presença disto no currículo escolar parece trazer efeitos para a visão de mundo, de si mesmo e para os compromissos políticos de protagonistas do currículo, proporcionando o empoderamento deles.

Em um exercício de reversibilidade, pode-se dizer que, no decorrer do processo, com a presença de outras abordagens pedagógicas, a luta cultural central ocorre entre essa perspectiva e aquela de neutralidade do currículo, a qual foi exposta anteriormente.

Nessa luta, quando um grupo de protagonistas não obtinha o sucesso pretendido em um espaço, se deslocava para outros, com possibilidades de se manter num lugar favorável na luta cultural, ou seja, quando não se faziam presentes no interior da escola, se situavam na formação de professores, ou nos espaços de gestão escolar, ou ainda no espaço dos encontros científicos da educação. Tais espaços, no processo analisado, vão se conectando ao longo do tempo, num movimento de confluência e dispersão.

Na região onde se situa o município focalizado para a pesquisa, a realização do I Seminário de Expansão do Ensino Público Estadual foi desencadeada por uma Secretaria de Educação Municipal, na gestão ligada aos trabalhadores do campo, em consórcio com outros municípios vizinhos. O Seminário foi decisivo para a oferta de cursos de licenciatura na região e, a partir dele, se instalou um Fórum Regional de Educação e uma Mostra de Educação.

O consórcio de municípios realizou diferentes cursos de formação inicial e continuada de professores. Cursos que se mostraram potencializadores, porque qualificavam os professores para a autonomia na organização de seu próprio trabalho – a elaboração da cartilha é um exemplo disso.

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O I Fórum e a I Mostra foram realizadas em 1998, ocorrendo até os dias atuais. Tais Mostras são compreendidas como espaços onde os municípios podem expor experiências educacionais, na perspectiva de socializar problemas e soluções.

Pode-se dizer que a criação do Fórum se mostra significativa, porque ilustra não só a compreensão de como o local, embora situado no global, não pertence a ele; ilustra uma forma de como o local se dissemina para o global: a criação do Fórum se constitui no fortalecimento da luta cultural dos trabalhadores do campo e daqueles que com eles se identificam, porque criou possibilidades não só de manutenção da luta, mas de sua ampliação para outros espaços e outros protagonistas, configurando uma disseminação.

A disseminação (BHABHA, 2003) ou dispersão de poder (GRAMSCI, apud HALL, 2003) teve início no contexto da complexificação da função e organização do Estado Moderno que, embora burocrático, foi tomado por práticas culturais da sociedade civil, com perspectivas de emancipação social. Desse modo, os diferentes protagonistas se alternaram em diversificados espaços e nos distintos momentos do processo da política de currículo analisada, criando possibilidades de construção de novas hegemonias.

Considerações Finais

No processo exposto neste texto, a prática cultural permeada pela racionalidade técnica favorece grupos hegemônicos. Nela, a política de currículo ocorre por meio de uma combinação de burocracia executiva do Estado Moderno, psicologização pedagógica, despotencialização da organização do trabalho docente e certa “poluição” da concepção e organização do conhecimento escolar.

Os procedimentos técnico-formais que caracterizam a eficiência burocrática escondem quem os realizará – qualquer um pode realizá-lo –, e em proveito de quem, uma vez que as finalidades não importam, o importante são os meios. A psicologização pedagógica, por sua vez, tem sua atenção voltada para o como ensinar, para os métodos de ensino e para os estados psicológicos dos estudantes, considerados individualmente. Nesse contexto, o trabalho docente se mostra enfraquecido, uma vez que marcado pela divisão e intensificação, fragilizando o protagonismo social de professores e estudantes.

Nessa política de currículo, a produção, seleção e organização dos conhecimentos, valores e significados escolares são pautadas pela eficiência e pela eficácia. Nesse currículo, a racionalidade técnica lança seus holofotes para os meios, criando uma dicotomia entre meios e fins. Mais do que isso, com tal lógica há uma perda da perspectiva das finalidades do currículo, conforme indicado nos depoimentos que iniciam este texto.

Como protagonistas da política de currículo, professores e alunos não ficam imunes a esse processo, porque perdem autonomia, não desenvolvem a capacidade de governar e de se governar. Isso significa que a política de currículo orientada pela racionalidade técnica é despotencializadora, porque, basicamente, dificulta as possibilidades de auto-identificação. Essa prática cultural que favorece grupos hegemônicos esconde a dimensão política da luta cultural e, portanto, ocultam a própria política de currículo.

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Ao considerar o processo da política de currículo, reconhece-se que ela se encontra marcada pela simultaneidade da presença dos seus diferentes protagonistas e pela mistura entre lógicas locais e distantes na sua configuração, o que vem caracterizar seu caráter reversível e a disseminação. Essa política cultural se mostra potencializadora, porque possibilita o reconhecimento de que a política de currículo, tal como se apresenta no processo analisado, não é uma conversão em massa dos protagonistas e de suas práticas culturais.

Inicialmente, a política de currículo em pauta encontrava-se marcada, predo-minantemente, pela prática cultural de trabalhadores do campo e de quem com eles se identificava, uma prática cultural orientada pela metáfora da libertação. Essa política de currículo não se conformou à condição de governada que o contexto social lhe impunha, naquele momento, questionando a força de determinação de um poder central sobre uma política de currículo local.

Nessa perspectiva, o currículo é pensado a partir de uma combinação de integração pedagógica e emancipação social, configurando a lógica da produção, seleção e organização dos valores, significados e conhecimentos escolares. A partir da etnomatemática/etnociência e da pedagogia libertadora, em especial, esses conhecimentos, valores e significados escolares são integrados e/ou organizados por meio de temas. Estes, por sua vez, encontram-se definidos sob as condições sócio-históricas da comunidade, entendida enquanto um grupo sócio-cultural, que se encontra num processo de identificação.

Pode-se dizer, assim, que essa política de currículo tem a comunidade como centro. Em decorrência, o cerne dessa política não é o global;, é o local; não é a disciplina ou o método, é a prática cultural dos seus atores. Esse currículo atinge a lógica do currículo disciplinarizado e burocratizado, porque define sua órbita em torno dos conflitos locais, confrontando a suposta neutralidade do currículo.

Tendo isso em vista, esse currículo abre possibilidades de empoderamento dos protagonistas que se encontram, em especial, na prática cultural que dá corpo a essa política, uma prática cultural que implica na capacidade de governar e se governar.

Emancipação social e integração curricular se apresentam, assim, como uma luta cultural contra o dogmatismo, o fanatismo, a sectarização, a disciplinarização, a burocratização e, enfim, contra a suposta neutralidade do currículo.

Além disso, referida política possui uma lógica local, uma forma local, mas não se encontra fora do global. Numa posição ambivalente, está dentro de uma política de currículo globalizada, mas não pertence a ela.

A política de currículo analisada se apresenta como uma guerra de longa duração, como uma luta cultural, porque significa uma constante busca da construção de novas hegemonias por parte dos grupos nela identificados, em especial, daqueles situados, desfavoravelmente, nas relações sociais. Nessa política, vê-se que as forças hegemônicas empurram as novas hegemonias para trás, mas de repente, quando menos se espera, ela retorna ou irrompe, mantendo-se como fogo de monturo, a metáfora que melhor a representa. O contrário também é verdadeiro, mas o importante é que as forças sociais

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suplantadas em qualquer período histórico particular não desaparecem do terreno da luta; nem a luta em tais circunstâncias é suspensa. (HALL, 2003, p. 310)

Notas

1 Essa pesquisa encontra-se em uma Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, intitulada o processo de produção da política de currículo em Ribeirão Cascalheira – MT (1969 a 2000): diferentes atores, contextos e arenas de uma luta cultural (Oliveira, 2006). O texto que ora se apresenta expõe e amplia parte da análise realizada na tese.

Referências

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Correspondência

Ozerina Victor de Oliveira, Professora da Universidade de Mato Grosso, Brasil.

E-mail: ozerina@ig.com.br

Texto publicado em Currículo sem Fronteiras com autorização da autora.

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