STAR "X"

A Educação Física na Escola

Currículo sem Fronteiras, v.6, n.2, pp.98-113, Jul/Dez 2006


CURRÍCULO: Política, Cultura e Poder1

Elizabeth Macedo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

A partir da análise de teses e dissertações sobre o campo do currículo no Brasil, o texto problematiza a distinção entre currículo formal e currículo vivido que está na base de parte desses estudos. Argumenta que, embora essa distinção tenha surgido para ampliar o sentido dado ao currículo, trazendo para ele a cultura vivida na escola, a forma como a articulação vem sendo feita tem implicações políticas que precisam ser consideradas. Dentre as conseqüências levantadas estão o fortalecimento da lógica do currículo como prescrição e o privilégio de uma concepção de poder linear. Numa abordagem alternativa, o texto propõe que o currículo seja pensado como arena de produção cultural, para além das distinções entre produção e implementação, entre formal e vivido, entre cultura escolar e cultura da escola. O argumento subjacente a essa abordagem é a de que o currículo é um espaço-tempo de fronteira, no qual as questões de poder precisam ser tratadas de uma perspectiva de poder menos hierárquica e vertical. Isso implica pensar uma outra forma de agência, capaz de dar conta de hegemonias provisórias e da superação da lógica da prescrição nos estudos sobre política curricular.

Palavras-chave: currículo, poder, cultura

Abstract

Departing from the analysis of theses and dissertations in Brazilian curriculum field, this text discusses the distinction between formal and lived curriculum which grounds some of them. Its central argument is that, although the target distinction has been created so as to enlarge meaning attributed to curriculum by including the lived cultures in schools, the way this articulation tends to be done points out to remarkable political implications. Among these implications, this text emphasizes the logic of prescription and a linear conception of power. Therefore, it suggests an alternative approach: curriculum is to be dealt with as a cultural production arena, beyond distinctions between production and implementation spheres, between formal and lived, and between school culture and culture in schools. The basic assumption of this approach is curriculum as a boundary space-time, in which questions related to power should be treated from a less hierarchical and vertical perspective. Its main implication is pondering another kind of agency, so as to grasp temporary hegemonic trends, as well as to overcome the logic of prescription in the studies on curriculum politics.

Key words: curriculum, power, culture ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 98

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Desde os anos 1980, a produção teórica em torno da temática do currículo ampliou-se consideravelmente no Brasil. Dados sobre os grupos de pesquisa em andamento no CNPq revelam que há hoje no país, somente na área de educação, 147 equipes dedicadas ao estudo do currículo. Com isso, a produção publicada em livros e periódicos já não se faz dependente da literatura importada, sobretudo dos Estados Unidos e da Inglaterra. O mercado editorial tem contado com muitas traduções, especialmente de autores de matriz pós-crítica, mas, no geral, tais traduções compõem coletâneas em que dialogam com textos nacionais. Julgo que o incremento da produção no campo ao longo dos últimos 20 anos comprova, de forma irrefutável, que nossa reflexão é hoje muito superior a que era realizada nos anos 1980, ainda que Moreira (2002) afirme, em panorama sobre o GT de Currículo da ANPEd, que, naquele espaço, as discussões já foram melhores e mais conseqüentes do ponto de vista da produção de conhecimento no campo.

Pretendo, neste texto, dialogar com um dos principais indicadores da consolidação do campo, qual seja, a produção dos Programas de Pós-graduação. Em estudo recente (Macedo et al., 2005), foram analisadas as teses e dissertações com foco no currículo da educação básica produzidas no período entre 1996 e 2002 por Programas que têm se dedicado à temática de forma institucional. Nada menos do que 27 Programas de Pós-graduação pesquisam especificamente sobre currículo, tendo produzido 453 teses e dissertações nos sete anos analisados. Essa ampliação da preocupação com a temática tem sido acompanhada por certa dispersão no que se entende por currículo2. Neste texto, fixo-me em alguns dos sentidos que têm sido atribuídos ao currículo nos Programas de Pós-graduação que tiveram sua produção analisada. Interessa-me, especificamente, uma distinção que nossas pesquisas têm cristalizado entre currículo formal e currículo em ação3.

Dentre as temáticas enfocadas pelas teses e dissertações, chama a atenção o elevado número de trabalhos cujo principal interesse é a prática curricular, ou o currículo vivido ou praticado. Do total de trabalhos analisados, 43,5% dedicaram-se a esse aspecto do processo curricular. As propostas curriculares, ou o currículo formal, foram o segundo foco de maior interesse, constituindo 22,3% das teses e dissertações. Estranhamente, no entanto, apenas 12,6% das pesquisas trataram de forma mais integrada a prática e as propostas. Ainda assim, esse número correspondeu quase que exclusivamente a estudos que buscaram entender as múltiplas formas de apreensão das propostas oficiais pelos professores em sala de aula ou propor maneiras de fazê-lo4.

O conceito de currículo que temos utilizado em nossas análises parece, portanto, bipartido. Talvez pudéssemos defender que tal distinção entre propostas e prática seja apenas um recorte de pesquisa ou mesmo uma estratégia didática para compreender a multiplicidade envolvida no currículo. Argumento, no entanto, que, embora essa distinção tenha surgido para ampliar o sentido dado ao currículo, trazendo para ele a cultura vivida na escola, a forma como a articulação entre currículo formal e currículo em ação vem sendo feita tem implicações políticas que precisam ser consideradas. Entendo que essa distinção contribui para uma concepção hierarquizada de poder — seja de cima-para-baixo seja de baixo-para-cima — que dificulta a possibilidade de pensar o currículo para além da prescrição. Nesse sentido, aponto como parte de nossa agenda política, como pesquisadores

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do campo, a necessidade de pensarmos um conceito de currículo que o conceba como espaço de produção cultural para além dessas dicotomias. Entendo que desconstruir a necessidade de conceitos como currículo formal e currículo em ação é uma etapa fundamental para que a relação de poder no currículo seja pensada de forma oblíqua, como define Garcia Canclini (1998). É isso que buscarei fazer na primeira parte deste texto. Como alternativa, trago, num segundo momento, a contribuição de autores pós-coloniais para pensar o currículo como cultura, em que espero que fique clara uma concepção de poder menos linear.

Currículo formal e currículo em ação: que articulações?

Ainda que Dewey salientasse, desde os anos 1920, que as experiências curriculares transcendiam as atividades planejadas e planificadas nos documentos escritos, somente no final da década de 1960 criava-se um movimento que buscava dar conta do “hiato entre os planos curriculares e a sua aplicação” (Jackson, 1996, p.9). Com esse movimento, o campo veria surgir uma série de adjetivos que tentavam ampliar o conceito de currículo. Uma ampliação que abarcava desde as experiências negativas, não previstas, a que os alunos eram submetidos na escola — currículo oculto (Jackson, 1968) ou currículo não-escrito (Dreeben, citado por Jackson, 1996) — até as ausências de conteúdos ou experiências expressas em termos como currículo nulo. Interessa-me, neste texto, destacar duas dimensões que até hoje permeiam nossas discussões.

Historicamente, poderíamos dizer que começamos a falar em currículo formal e currículo em ação como forma de contraposição à noção burocratizada das teorizações tradicionais do campo que acentuavam os documentos legais e as políticas institucionais como foco dos estudos em currículo. Em texto datado de 1971, de grande influência nos Estados Unidos e em autores que viriam a ser traduzidos no Brasil, Greene (1977) defendia, numa matriz fenomenológica, que o currículo precisava se abrir à experiência dos sujeitos, definindo o que até então se denominara por currículo como saber socialmente prescrito a ser dominado. Propunha, dessa forma, a superação da idéia de um documento preestabelecido por uma concepção que englobasse atividades que permitissem ao aluno compreender seu próprio mundo-da-vida. Ainda que a proposição de Greene não tivesse por objetivo contrapor as dimensões formal e vivida, mas enfatizar aspectos até então pouco presentes na teorização curricular, contribuía para um alargamento do conceito de currículo. Ficava claro que as experiências de sala de aula, o ensino ou o que, para as teorias tradicionais, consistiria na implementação do currículo deveria fazer parte das discussões. No que poderíamos chamar de um mesmo movimento de reconceptualização do campo, também os autores de filiação marxista, embora priorizassem a análise e a denúncia das dimensões ocultas do currículo (Apple, 1993), salientavam a importância de considerar o que ocorria nas escolas e nas salas de aula.

Estava em jogo uma crítica à tradicional separação entre produção e implementação do currículo, mas mais do que isso, a discussão da reconceptualização implicava tentar trazer

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para dentro do que se concebia como currículo a cultura produzida na escola. O diálogo com a tradição, no entanto, moldou essa ampliação que assumiu a forma de acréscimos àquilo que era entendido por currículo — o formal — de outras dimensões, entre elas a vivida. São muitos os termos que definem esse somatório de dimensões: pré-ativo e interativo (Jackson, 1968); como fato e como prática (Young e Whitty, 1977); oficial, percebido, operacional e experencial (Goodlad, 1979); prescrito, apresentado, moldado, em ação e realizado (Gimeno Sacristán, 1988); pré-ativo e ativo (Goodson, 1995).

Em todas essas formulações, independente do fato de se alicerçarem em fundamentos teóricos bastante diversos, fica patente a polarização entre algo que é dinâmico, (inter) ativo, em ação e algo que é estático, pré-ativo, dado. Uma polarização que expressa duas formas de conceber as relações entre currículo e cultura. Tendo em vista a importância que assumiram no Brasil as formulações de Young e Whitty (1977) e de Goodson (1995), trabalharei, nas discussões que se seguem, com as idéias de currículo como fato/pré-ativo e currículo como prática/ativo. Interessa-se, particularmente, entender como essas distinções se associam com uma outra separação — a cultura que é objeto de ensino e a cultura que a escola produz. Defendo que, ainda que Young e Whitty (1977) e Goodson (1995) advoguem a integração entre essas dimensões do currículo, a sua própria existência acaba por reforçar a separação entre produção e implementação de propostas curriculares, consolidando uma visão prescritiva do currículo.

A proposição de Goodson (1995) de que o currículo escrito seja tomado como uma dimensão pré-ativa, como “um roteiro para a retórica legitimadora da escolarização” (p.21), está em acordo com o que Young e Whitty (1977) definiam como currículo como fato. Apesar de esta última definição não se referir especificamente ao currículo escrito, entendo que há uma relação incontestável entre currículo como fato e currículo pré-ativo ou escrito. Para esses autores (Young e Whitty, 1977; Goodson, 1995 e Young, 2000), o currículo como fato designa a idéia de que há um saber externo à escola para ser transmitido via currículo. Trata-se do lugar em que o saber reificado tende a tomar forma como aquilo que deve ser ensinado. Se pensamos no currículo como fato na perspectiva da relação entre currículo e cultura, podemos dizer que essa noção repousa sobre a idéia funcionalista que vê o currículo e a escola como o lugar de transmissão da cultura. Uma idéia, que, numa vertente crítica embasada em Williams (1984), tem servido a uma definição de currículo como seleção da cultura largamente utilizada em nossos textos. Entendo que, mesmo que as abordagens críticas (e pós-críticas) do currículo tenham questionado a ausência de determinadas culturas nessa seleção denominada currículo, assim como as relações de poder que a produz, a cultura permanece sendo tratada como objeto de ensino (Macedo, 2004a).

O conceito de currículo como fato se articula, assim, com o que Forquin (1993) tem denominado de cultura escolar, uma cultura didatizada que cumpre ao currículo transmitir. Nessa formulação, a cultura é vista como um repertório de sentidos partilhados, produzidos em espaços externos à escola. Desse repertório, são selecionados e organizados elementos culturais, num processo que envolve didatização, ou mediação/transposição didática, que compõem o mosaico a que denominamos currículo. Entendo que dizer que tal processo

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expressa e envolve uma luta por legitimidade das culturas na esfera social é insuficiente para uma abordagem crítica do currículo.

A forma aditiva como as preocupações expressas por Greene (1977) vêm sendo respondidas estabelece um outro pólo que busca dar centralidade aos processos cotidianos vividos nas escolas: o currículo como prática (Young e Whitty, 1977) ou o currículo ativo (Goodson, 1995). Trata-se de uma dimensão do currículo que, para Young (2000), parte de como o conhecimento é produzido e não da estrutura do conhecimento em si. O saber e a cultura passam a ser vistos como algo construído pela ação de professores e alunos como sujeitos da escola. Do ponto de vista da cultura, a concepção de currículo como prática daria conta daquilo que Forquin (1993) tem denominado da cultura da escola como um “mundo social” (p.167). A cultura da escola não seria, nesse sentido, algo a ser ensinado, mas a produção simbólica e material que se dá no seio da escola.

Dado o caráter negativo, repetitivo, associado ao currículo como fato em contraposição ao dinamismo trazido pela noção de currículo como prática, era de se esperar que este último ganhasse centralidade nas discussões do campo. A produção bibliográfica na área nesses últimos 30 anos tem mostrado que a dimensão ativa do currículo se constituiu, efetivamente, em foco privilegiado de análise. Trata-se de um grande avanço se consideramos a situação descrita por Greene (1977) em que as planificações burocráticas dos documentos formais eram absolutas. Problematizo, no entanto, essas boas novas, trazendo a preocupação que tem me acompanhado nos meus últimos estudos. Parece-me que, embora tenhamos ampliado o conceito de currículo para dar conta de um conjunto de outras experiências, a marca dessa ampliação é a idéia de um somatório de dimensões não articuladas. Ainda que, a primeira vista, percebamos uma virada no sentido da valorização da dimensão vivida do currículo, isso não parece ter alterado a idéia de currículo como prescrição que estava na base das teorizações tradicionais do campo. Teríamos, assim, mudado apenas de forma periférica o que entendemos por currículo, introduzindo a cultura produzida na escola como parte importante a ser considerada, mas mantendo a lógica de separação entre produção e implementação que está na base dos problemas trazidos por uma concepção burocratizada de currículo. E isso tem implicações na forma como concebemos as relações de poder.

O estudo das teses e dissertações, e possivelmente uma análise mais detida da produção teórica e das propostas curriculares no Brasil, oferece um bom exemplo tanto de como a dicotomia entre currículo como fato e currículo como prática está presente em nossas formulações, quanto de suas implicações políticas. Poderíamos dizer que, num primeiro conjunto de estudos, a centralidade permanece na dimensão pré-ativa, ainda que, em sua maioria, os trabalhos reconheçam a existência da dimensão ativa do currículo. Nesses casos, é comum que uma relação linear de dominação do currículo como fato sobre o currículo como prática seja estabelecida. São trabalhos que denunciam a tentativa de controle da escolarização por meio do currículo pré-ativo ou que o tratam como algo que deve ser incontestavelmente seguido. Neste último caso, tanto se analisa como se dá a implementação dos currículos pré-ativos como são propostos métodos para fazê-lo. Na maioria dos estudos, a dimensão ativa do currículo está presente, mas é apresentada como

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uma esfera direcionada pelo currículo como fato. No geral, as relações estruturais hierárquicas entre uma política estatal e as instituições educacionais são privilegiadas. A denúncia dos mecanismos pelos quais as ações da escola são controladas, a análise dos motivos pelos quais esses mecanismos não funcionam ou, ainda, a oferta de formas pedagógicas que pudessem fazê-los funcionar são os focos principais dessas pesquisas. Em última instância, a centralidade dada ao currículo escrito facilita o que Young (2000) analisa como um deslocamento do currículo dos contextos sociais a que está necessariamente ligado, que propicia a compreensão de que sua dimensão formal é autônoma. Reside subjacente a essa concepção, a idéia de que, se bem aplicados, os documentos curriculares são capazes de alterar a prática, ainda que em muitos casos essa capacidade seja entendida como negativa. Trata-se, em última instância, de um modelo centrado na ação vertical do Estado sobre as escolas, depositário de uma concepção linear de poder. Concepção que leva os estudos a negligenciar os espaços de resistência abertos por ações não previstas, dificultando que sejam vislumbradas alternativas a não ser as relacionadas a modificações na estrutura econômica e política. O papel do professor como formulador do currículo e o espaço da escola como produção cultural é negado em prol de uma leitura mecanicista em que o dia-a-dia da escola é regido por normas que lhe são externas.

É num segundo conjunto de trabalhos que a dimensão ativa e, portanto, a cultura produzida na escola, ganha relevo. São estudos que valorizam as ações potenciais dos sujeitos do currículo, dentre os quais elenco estudos etnográficos da escola com foco no currículo, e, em outra perspectiva teórica, estudos do cotidiano como espaço da prática em que currículos alternativos são produzidos. Freqüentemente, essas teses e dissertações desconsideram os documentos curriculares escritos, entendendo-os como produto da mente de legisladores sem real influência no dia-a-dia do currículo, ou os tratam como o oficial a ser subvertido pela ação dos sujeitos. Young (2000) defende que a noção de currículo como prática desloca o foco para a ação coletiva dos sujeitos, de modo que as práticas dos professores tornam-se importantes ao desafiarem as concepções hegemônicas sobre conhecimento, no entanto salienta que se trata de uma ênfase enganadora. Assim como Goodson (1995), defende que a crença excessiva nas ações subjetivas de professores e alunos limita as possibilidades de compreensão histórica do campo, pois situa as possibilidades de mudança quase que exclusivamente na interação entre professores e alunos. Algumas persistências históricas, como por exemplo, das formas de organização curricular, são menosprezadas, abrindo possibilidades para certo voluntarismo. Nesse sentido, do ponto de vista político, a concepção de currículo como prática “limita nossa capacidade de conceber alternativas que não se baseiem em alguma forma de rejeição utópica dos currículos tradicionais” (Young, 2000, p.43). Entendo que, de forma semelhante a que ocorre com os estudos que privilegiam a dimensão escrita do currículo, a ênfase em sua dimensão vivida autonomiza a resistência e quebra a relação paradoxal entre autonomia e controle que caracteriza o fazer político do currículo (Ball, 1997). Por mais estranho que possa parecer, a dicotomia entre o contexto de produção do texto curricular oficial (currículo como fato) e o contexto de implementação ou produção de um outro texto

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curricular alternativo (currículo como prática) acaba sustentando uma visão linear da relação entre essas dimensões semelhante a percebida em estudos que enfatizam o currículo escrito.

Esses dois blocos em que organizei as teses e dissertações analisadas apontam, a meu ver, para o fato de que não basta enfatizar o currículo como prática para que a escola e o currículo sejam tratados como um espaço de produção cultural. O modelo dicotômico — com articulações do tipo funcionais — que tem guiado a relação entre as dimensões ativa e pré-ativa do currículo propicia o que Goodson (1995) denomina de “ideologia do currículo como prescrição” (p.67). Para o autor, esse modelo mantém o controle e o poder nas mãos das burocracias estatais, concebendo a prática tanto como totalmente controlada quanto como o espaço da libertação, desde que essa libertação não desafie a retórica da prescrição. Crítica semelhante à de Goodson, é realizada por Ball (1997) quando identifica que a maioria dos estudos sobre política curricular está baseada na tradicional separação entre contexto de produção e de implementação dos documentos curriculares. Nesse sentido, a dinamicidade do processo político do currículo é mascarada, induzindo a uma compreensão de poder verticalizada, estruturada — seja o poder dos poderosos, seja o poder dos subalternos5. Julgo possível afirmar, pela análise das teses e dissertações (e também por uma análise assistemática de nossa produção no campo do currículo) que o movimento no sentido da superação da concepção tradicional de currículo, ao salientar suas outras dimensões, não conseguiu dar conta da superação da lógica tradicional. Permanece uma polarização que se alicerça na separação entre um momento de produção de documentos formais e outro(s) de sua implementação. Essa separação tem levado, como argumenta Goodson (1995), a certo desprezo pela dimensão escrita do currículo, mas paralelamente tem fortalecido a lógica do currículo como prescrição que acaba por dar destaque a tal dimensão.

Como forma de superar o modelo que propicia a prescrição, Goodson (1995) Young e Whitty (1977) e Young (2000) têm defendido uma abordagem integrada das dimensões escrita e vivida do currículo. Essa defesa, no entanto, se centra muito mais em salientar a importância do estudo da dimensão pré-ativa, ou dos conflitos envolvidos em sua definição, como resposta ao que têm definido como “uma crença absoluta nas propriedades de transformação do mundo que o currículo como prática possa ter” (Goodson, 1995, p.21). Forquin (1993), ao defender a relevância da cultura escolar, faz um movimento semelhante destacando que a cultura da escola não deve nos fazer esquecer de um “conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que (...) constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada” (p.67). Entendo que a preocupação desses autores com a retomada da dimensão pré-ativa do currículo, como anos antes o movimento da reconceptualização fazia com o currículo vivido, explicita a necessidade de trabalharmos com uma concepção de currículo que possa superar essa dicotomia. Havia, naquele momento, um desafio que entendo ainda estar presente. Precisamos pensar o currículo mais como algo que está sendo do que como algo que já foi. Essa tarefa envolve, a meu ver, buscar respostas que dêem conta da dinamicidade do currículo, das relações de hegemonia provisórias nele presentes. Entendo que isso implica pensá-lo como arena de produção cultural, para além das

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distinções entre produção e implementação, entre formal e vivido, entre cultura escolar e cultura da escola. Numa época em que o político parece se confundir com o cultural (Jameson, 2001), julgo tratar-se de uma tarefa política que precisa ser encarada pelo campo do currículo.

Redefinindo o currículo como cultura

Proponho-me, agora, o exercício de pensar as relações entre cultura e currículo para além das distinções binárias entre produção e de reprodução cultural, expressas em termos como currículo como fato e currículo como prática, entendendo ser necessário criar formas que nos permitam tratar o poder numa perspectiva mais oblíqua (Garcia Canclini, 1998). Faço isso dialogando com autores pós-coloniais e apresentando uma definição alternativa de currículo que o perceba como um espaço-tempo de fronteira entre saberes.

Antes de mais nada, julgo necessário esclarecer que não vejo o currículo como um cenário em que as culturas lutam por legitimidade, um território contestado, mas como uma prática cultural que envolve, ela mesma, a negociação de posições ambivalentes de controle e resistência. O cultural não pode, na perspectiva que defendo, ser visto como fonte de conflito entre diversas culturas, mas como práticas discriminatórias em que a diferença é produzida. Isso significa tentar descrever o currículo como cultura, não uma cultura como repertório partilhado de significados, mas como lugar de enunciação. Ou seja, não é possível contemplar as culturas, seja numa perspectiva epistemológica seja do ponto de vista moral, assim como não é possível selecioná-las para que façam parte do currículo. O currículo é ele mesmo um híbrido, em que as culturas negociam com-a-diferença. Desenvolvo o sentido que dou à idéia de negociação tendo por base a literatura pós-colonial, entendendo-a como, de alguma forma, relacionada às noções de diálogo analítico (Ellsworth, 1997), redes (Alves e Oliveira, 2002), conversa complicada (Pinar, 2005), solidariedade (Gilroy, 2001). Não exploro as aproximações e afastamentos entre essas noções neste texto6, optando por me fixar na discussão do deslocamento do poder na perspectiva do híbrido pós-colonial que defendo ser o currículo.

Julgo possível tratar os currículos numa perspectiva pós-colonial, na medida em que não entendo o colonialismo como uma dominação política e econômica, mas fundamentalmente como um processo cultural, como uma tentativa de espraiar pelo mundo uma única forma legítima de criação de significados. Nesse sentido, nossos currículos são também um lugar-tempo em que essa forma é vivida, assim como o são artefatos culturais como livros, filmes, obras de arte. Conceitos como currículo como fato (Young, 2000) e currículo escrito (Goodson, 1995) deram, de certa forma, conta dessa idéia de dominação. Apontaram para a reificação do conhecimento escolar, para a sua externalidade em relação à experiência na/da escola, assim como permitiram questionar sua universalidade e desnudaram seu caráter ideológico. Explicitaram, ainda, a necessidade de dimensões complementares quais fossem o currículo como prática (Young, 2000) e o currículo vivido (Goodson, 1995). Apoiaram-se, no entanto, em concepções binárias que fixaram a

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diferença, justificaram dicotomias entre cultura escolar e cultura da escola e implicaram concepções lineares de poder.

Entendo ser mais promissor, do ponto de vista teórico, buscar pensar o currículo como espaço-tempo de fronteira, permeado por relações interculturais e por um poder oblíquo e contingente. A noção de fronteira tem sido utilizada pelo pós-colonialismo para designar um espaço-tempo em que sujeitos, eles mesmos híbridos em seus pertencimentos culturais, interagem produzindo novos híbridos que não podem ser entendidos como um simples somatório de culturas de pertencimentos. Para Bhabha (2003), a noção de cultura deve ser tomada numa perspectiva interativa como algo constantemente recomposto a partir de uma ampla variedade de fontes num processo híbrido e fluido. É também nessa perspectiva que julgo ser produtivo pensar o currículo.

Nesse sentido, o currículo seria um espaço-tempo de interação entre culturas. Usando a terminologia de nossas coleções Modernas, em que as culturas são vistas como repertórios partilhados de sentidos, poderíamos enumerar um sem número de culturas presentes no currículo. Desde o que chamaríamos de princípios do Iluminismo, do mercado, da cultura de massa até repertórios culturais diversos, dentre os quais freqüentemente destacamos culturas locais. Mas estar na fronteira significa desconfiar dessas coleções e viver no limiar entre as culturas, um lugar-tempo em que o hibridismo é a marca e em que não há significados puros.

É a partir dessa fronteira que entendo ser o currículo que pretendo discutir as questões de poder, argumentando que uma perspectiva de poder menos hierárquica e vertical nos permite pensar uma outra forma de agência. Entendo que essa concepção de poder e de agência é necessária para a superação da lógica da prescrição que tem caracterizado os estudos em políticas curriculares.

A idéia de hibridismo cultural que caracteriza o entendimento pós-colonial da interação entre culturas precisa, no entanto, ser localizada num quadro social marcado por discursos globais extremamente poderosos, sob pena de parecer ingênua. Não se pode esquecer que as experiências de interação entre culturas têm sido muito marcadas por segregação e guetização, ou seja, pela tentativa de fixação de sentidos e de inviabilização da cultura como espaço-tempo de enunciação da diferença. Embora a diferença seja a marca do sistema simbólico a que denominamos cultura — e as classificações binárias sejam parte fundamental desse sistema — elementos que podem perturbar os sistemas classificatórios, ocupando regiões ambivalentes, ambíguas, são freqüentemente banidos ou pressionados para se manter dentro das fronteiras simbólicas estabelecidas pelas culturas. Como alerta Bhabha (2003), não podem ser desprezadas as tentativas do poder colonial de aniquilação das culturas subalternas, com seus procedimentos para marcar as diferenças, fechando classes de coisas e expelindo os elementos não classificáveis. Uma das principais estratégias discursivas do poder colonial para fixar sentidos e inviabilizar a diferença — o estereótipo — é, no entanto, para o autor (2003), ambivalente. E essa ambivalência nos impõe uma outra forma de entender o poder e a agência.

O conceito de ambivalência do poder colonial é fundamental para Bhabha (2003) e é ele que uso também para discutir as relações entre “o saber oficial” do currículo (Apple,

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1993) e os demais saberes presentes no espaço-tempo do currículo. Julgo importante salientar, antes de mais nada, que não pretendo aqui retomar as distinções entre currículo pré-ativo e ativo que critiquei anteriormente. Diferentemente de Ladwig (2003), não estou considerando o “saber oficial” como o saber colonizador do professor ou do currículo pré-ativo. Entendo que os discursos globalizados que o constituem fazem parte tanto dos discursos que aparecem nos documentos escritos quanto de nossas — de professores e alunos — múltiplas formas de agir no currículo. Ou seja, penso o currículo como espaço-tempo de fronteira em que discursos globais e locais negociam sua existência (e inexistência posto que hibridizar significa renunciar à idéia de identidade baseada em raízes de qualquer natureza).

No quadro em que me movimento neste texto, julgo fundamental entender o que chamo de discursos globais e porque os vejo como ambivalentes. Defino-os como os discursos através do qual o poder colonial opera, repletos de estereótipos que buscam fixar os sentidos, eliminar o outro, deslocar a ambivalência para fora do espaço em que pensamos e agimos o mundo. São discursos com ampla mobilidade — o que implica certo universalismo —, mas uma mobilidade que se deve a uma luta política, histórica, e não a características próprias desses discursos que os fazem melhor que as culturas locais. Sua ambivalência reside, portanto, na própria ambivalência do poder colonial tão bem descrita por Bhabha (2003).

Mas como falar de ambivalência de uma dominação tão forte quanto a dominação colonial, seja em sua vertente de dominação política (associada a uma primeira fase do pós-colonialismo) seja entendida como todo tipo de globalismo a que estamos cada diz mais submetidos? Ao fazer o que denomina de “anatomia do discurso colonial” (p.119), de modo a destacar sua ambivalência, Bhabha (2003) trata de seu principal aparato discursivo — o estereótipo — como “um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo, exigindo (...) que ampliemos nossos objetivos críticos e políticos” (p.110). Trata o estereótipo como fobia e fetiche, argumentando que a situação colonial passa pela articulação de sujeitos diversos de diferenciação (especialmente racial e sexual) e não pode ser entendida se o seu pólo inconsciente não for tratado.

Buscando dar conta da relação entre poder e prazer, que entende caracterizar a situação colonial, Bhabha localiza o estereótipo em três regimes de visibilidade e discursividade: fetichista, escópico e imaginário. A caracterização de Bhabha (2003) do estereótipo como fetiche se apóia na leitura freudiana segundo a qual “o fetichismo é sempre um jogo ou vacilação entre a afirmação arcaica de totalidade/similaridade (...) e ansiedade associada com a falta e a diferença” (Bhabha, 2003, p.116). Nesse sentido, o estereótipo mascara a ausência e a diferença ao mesmo tempo em que ressalta a falta percebida. Estabelece-se, assim, na interação cultural colonial, um jogo de prazer/desprazer, de dominação/defesa. Um jogo ambivalente, no qual o outro é apresentado como a expressão do mal, como o negativo do Eu, mas também como objeto do desejo, como aquilo que suprirá a falta constitutiva do Eu. O preenchimento dessa falta, no entanto, nunca será total, uma vez que estará sempre lembrando o Eu da incompletude de sua cultura. Dessa forma, por mais que o

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estereótipo busque impedir a circulação de significantes como raça e gênero, a não ser como racismo e marxismo, esse impedimento se movimenta numa zona ambivalente e nunca será total.

Em relação à pulsão escópica, o autor sugere que o poder seja entendido como “algo que funciona em relação com o regime de pulsão escópica” (p.118). O prazer de olhar “localiza o objeto vigiado no interior de uma relação imaginária” (p.119), mas a eficácia da vigilância somente será possível com o consentimento ativo daquilo que é vigiado. A ambivalência desse consentimento, que é ao mesmo tempo real e mítico, complementa a compreensão da noção de ambivalência do estereótipo. Por fim, Bhabha dialoga com o esquema lacaniano do imaginário, dentro do qual insere o estereótipo como fetiche. O reconhecimento e o afastamento da diferença produzido pelo poder colonial é relacionado, pelo autor, com as duas formas de identificação associadas com o imaginário lacaniano — o narcisismo e a agressividade. Da mesma forma que o sujeito, na fase formativa do espelho, reconhece-se em uma imagem que é também alienante e fonte de conflito, o poder colonial (e o estereótipo como sua estratégia) reconhece e mascara a diferença. A completude do estereótipo, assim como a da identidade no espelho, é ameaçada pela falta.

Desse tríplice exercício de salientar a ambivalência do poder colonial, Bhabha (2003) conclui que:

O ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem que se torna o bode expiatório de práticas discriminadoras. É um texto muito mais ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas, deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e cisão de saberes ‘oficiais’ e fantasmáticos para construir as posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista (Bhabha, 2003, p.125).

A descrição de Bhabha do poder colonial, que atua por intermédio do estereótipo que fixa e impede a circulação da diferença, apresenta-o, a meu ver, como muito mais poderoso do que as interpretações hierarquizadas típicas, por exemplo, das análises marxistas. Trata-se de um poder que se espraia contando com fortes mecanismos de manutenção conscientes e inconscientes. Essa força não significa, no entanto, a idéia de um poder absoluto, aliás, muito pelo contrário, sua força parece residir em sua ambivalência. Uma ambivalência que, paradoxalmente, é também o espaço em que se torna possível pensar a agência do Outro.

Parece óbvio que não é possível transpor de forma automática as discussões de Bhabha (2003) para entender as relações entre culturas presentes no currículo pensado como espaço-tempo de fronteira. Entendo, no entanto, que mais do que possível é útil nos apropriarmos de suas análises para dar conta das estratégias utilizadas pelo poder colonial (seja do iluminismo, seja do mercado, seja de classe) também no espaço-tempo da escola e do currículo. Tal apropriação nos autorizaria, a meu ver, a perceber que a negociação entre as culturas presentes no currículo escolar não pode ser pensada de forma hierárquica (e aqui me refiro a uma hierarquia de cima para baixo, mas também de baixo para cima como propõem as pedagogias críticas). Que, ao contrário, se trata de uma negociação muito mais

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complicada que envolve relações conscientes e inconscientes, que obviamente distinções binárias do tipo currículo pré-ativo e currículo ativo não são capazes de dar conta. Nesse sentido, as contribuições do pós-colonialismo — especialmente de Bhabha — nos ajudam a perceber que as culturas globais, ainda que busquem esconder seus hibridismos e seus limites, o fazem explicitando sua incompletude e abrindo espaço para outras temporalidades cotidianas. Esse é o jogo que jogamos não apenas na escola e no currículo, mas também lá. Um jogo em que ainda precisamos entender o que seria vencer.

E o que seria vencer?

Compreender o currículo como espaço-tempo de fronteira cultural e a cultura como lugar de enunciação têm implicações na forma como concebemos o poder e, obviamente, nas maneiras que criamos para lidar com ele. Trata-se, antes de mais nada, de lidar com o poder da perspectiva da cultura pensada como híbrido, o que nos exige uma outra compreensão da noção de hegemonia e agência. Bhabha (2003) enuncia essas preocupações com uma questão que creio fundamental: “qual poderia ser a função de uma perspectiva teórica comprometida, uma vez que o hibridismo cultural e histórico do mundo pós-colonial é tomado como lugar paradigmático de partida?” (p.46), complementando-a com a indagação “comprometida com o quê?” (p.46).

Se o discurso moderno respondia facilmente sobre lealdades políticas a determinados objetos, como por exemplo a classe, assumir o discurso pós-colonial significa aceitar a idéia de fragmentação, de contingências históricas dispersas, que nos exigem encenar outros antagonismos sociais. Com isso, não defendo a substituição de lealdades de classe por outras de raça ou gênero, como temos feito em diversos momentos, mas o pensar a agência numa outra epistemologia, uma epistemologia contingente que confunde as temporalidades históricas. Trata-se de um questionamento do racionalismo das ideologias modernas associado ao progresso. Nas palavras de Bhabha (2003), poderíamos argumentar que a contemporaneidade pós-colonial

produz uma estratégia subversiva de agência subalterna que negocia sua própria autoridade através de um processo de descosedura iterativa, religação insurgente, incomensurável. Ele singulariza a totalidade da autoridade ao sugerir que a agência requer uma fundamentação, mas não requer que a base dessa fundamentação seja totalizada; requer movimento e manobra, mas não requer uma temporalidade de continuidade e acumulação; requer direção e fechamento contingente, mas nenhuma teleologia e holismo (p.257).

Assim, a agência subalterna implica o reconhecimento da diferença, a negociação do agente que está sempre numa posição dialógica. É sempre um processo intersubjetivo, em que o agente está capturado numa trama em que é obrigado a negociar na contingência. É essa idéia de lidar com a diferença, que emerge da cultura como espaço-tempo híbrido e

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que torna o agente um sujeito intersubjetivo, que, como Bhabha (2003), entendo tornar possível a rearticulação das lutas sociais elas mesmas contingentes. Uma rearticulação que implica o “estar junto” em espaços em que tanto a diferença cultural quanto a discriminação estão presentes.

Nesse sentido, essa agência contingente, preocupada com as formas de intervir ideologicamente, repousa sobre a capacidade de negociação, de articulação de elementos antagônicos e contraditórios — sem a perspectiva teleológica — que criam objetivos de luta híbridos. Nesse espaço híbrido de negociação, não existem em uma forma pura referentes políticos que nos acostumamos a usar, como classe, raça, gênero. Para além do questionamento do sentido primordial desses grupos que direcionaram nossa ação política, a agência contingente explicita, ainda, que não há um objeto político homogêneo. A negociação dos pertencimentos é sempre um processo de tradução contingente e de transferência de sentido. Noções como classe (por exemplo), com as quais erigimos nossa noção de agência, têm se mostrado insuficientes num momento de profunda fragmentação em que pululam sub-empregos e empregos temporários. As alternativas teóricas e políticas que precisamos construir devem lidar com essas contingência históricas, as identidades coletivas pós-coloniais precisariam ser reinventadas, se é que é possível criar novas hegemonias num mundo em que os agentes políticos são descontínuos. Um mundo em que imagens e identificações antagônicas compartilham e lutam por espaço e visibilidade. Para Bhabha (2003), “o bloco simbólico-social (não homogêneo) precisa representar-se em uma vontade coletiva solidária” (p.56), o que implica em uma hegemonia que incorpora a alteridade e a iteração.

Acredito que Laclau e Mouffe (2001), apoiando-se nos conceitos de desconstrução e de ponto nodal, dão conta de discutir uma tal hegemonia. Sem abrir mão da idéia de que toda relação hegemônica assume uma dimensão universalista, os autores propõem que é necessário reconceptualizar o sentido de universal e o fazem numa perspectiva pós-estrutural. Para eles, toda cultura ocupa um lugar social particular, o que implicaria a inexistência de totalidades, assim como a impossibilidade de interação entre elas. Nessa perspectiva, não haveria particular, porque todo particular estaria fechado em si e se configuraria como uma totalidade. Ocorre que nas relações sociais são gerados antagonismos que criam cadeias de equivalências entre particulares e obrigam as cadeias a assumir uma representação que transcende as particularidades. Nesse movimento, uma particularidade assume a função universal7, o que Laclau e Mouffe (2001) caracterizam como uma relação hegemônica.

Nesse sentido, toda relação hegemônica é, ao mesmo tempo, universal, contingente e reversível. O projeto democrático passa a ser, então, visto como uma negociação, uma relação de hegemonia que impede sua total realização. Cada posição assumida pelos sujeitos é um processo de tradução e de transferência de sentido que se dá num espaço-tempo presente , disjuntivo, multifacetado e ambivalente. Ou como diz Hall (2003), a ação pós-colonial se centra na “negociação na prática” (Hall, 2003, p.87), sempre agonística.

Ainda me parece claro que, num tempo dominado por discursos globais e homogêneos, por hegemonias que não se admitem transitórias, o “negociar na prática” ou o negociar-

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com-a-diferença exige mobilização política. Ainda que não seja absoluto, e apenas por isso possa ser combatido, o poder colonial nos exige uma articulação estratégica dos saberes de diferentes grupos culturais sem que isso implique a contestação da singularidade da diferença. No entanto, é também verdade que essa dominação, por sua própria natureza híbrida, cria regiões de fronteira em que se torna obrigatório negociar o inegociável e é nessa região que reside nossa esperança de construção de uma política da diferença. É claro que não se trata de uma resistência capaz de surgir do nada, mas de um processo que pode ser construído por aqueles que habitam na fronteira entre diferentes identidades culturais e são capazes de traduzir "as diferenças entre elas numa espécie de solidariedade" (Bhabha, 2003, p.238).

Notas

1 Texto produzido a partir de reflexões da pesquisa Currículo de ciências: uma abordagem cultural, financiado pelo CNPq, pela FAPERJ e pelo Programa Prociência (FAPERJ/UERJ). Esta versão do texto foi escrita tendo por base trabalho inicial apresentado no XIII ENDIPE. A problematização constante da primeira parte deste artigo é a mesma apresentada no ENDIPE, porém a segunda parte foi substantivamente modificada, tendo em vista o debate neste evento. Destaco, especialmente, contribuições das colegas Vera Candau e Carmen Anhorn a que tento, dentro dos meus limites, responder nesta reformulação. O principal desses limites é que minha leitura mais detida do pós-colonial se restringe a H. Bhabha, S. Hall e E.Laclau e C. Mouffe, dos quais tiro a maior parte das categorias teóricas com as quais busco construir este texto. Paralelamente, gostaria de sugerir também que alguns trabalhos de B.S. Santos e N. Garcia Canclini e G. Spivak apresentam questões que também se encontram presentes na literatura pós-colonial com a qual trabalho.

2 Em texto anterior (Lopes e Macedo, 2002), argumentávamos que a construção de novas identidades para o campo tem tornado mais difusa a constituição de uma teoria do currículo.

3 Utilizo, neste momento, a terminologia currículo escrito e currículo em ação, mas quero com isso abarcar outras dicotomias que atendem ao mesmo propósito e que desenvolvo mais adiante.

4 Estudo realizado por Moreira (2002), analisando os trabalhos apresentados em Reuniões Anuais da ANPEd, parece ter observado separação semelhante entre currículo praticado e propostas curriculares.

5 Young (2000) sugere que “por terem sido os pontos de partida dessas pesquisas [em sociologia], os currículos como produtos, e não a produção do currículo na prática de professores e alunos definida em seu contexto mais amplo, são criados problemas, como a separação e as hierarquias entre as diferentes áreas do saber, que nossas teorias e métodos não permitem resolver” (p.45).

6 Em Macedo (2006, no prelo), exploro as relações entre diálogo comunicativo (Burbules, 2003), solidariedade, diálogo analítico e tradução (Santos, 2005).

7 Aqui os autores se apropriam do conceito de ponto nodal de Lacan, defendendo que toda cultura particular pode assumir uma função universal, sem que nenhuma característica própria dessa cultura seja a responsável por isso. Trata-se de um processo de identificação, que torna possíveis transições hegemônicas dependentes do processo político.

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Correspondência

Elizabeth Macedo, Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, Brasil.

E-mail: bethmacedo@pobox.com

Sítio: www.curriculo-uerj.pro.br

Texto publicado em Currículo sem Fronteiras

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com autorização da autora.

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